Um homem para com seu carro no semáforo, mas quando este fica verde ele não sai do lugar, pois percebe que está cego, mas não é uma cegueira comum, é um “mar de leite”, uma cegueira branca. Ele vai ao médico oftalmologista, que diz que seus olhos estão perfeitos e que não entende porque ele não vê. Pouco tempo depois, o médico está cego também, assim como as pessoas que tiveram contato com aquele homem. A cegueira se espalha incontrolavelmente. É assim que começa o livro de Saramago, que imagina nesta distopia como seria um mundo onde todos fossem cegos.
A princípio parece uma ideia absurda, mas o autor narra tudo de forma tão realista que com o passar das páginas tudo parece tão possível e assustador.
Com a disseminação da cegueira, o governo decide isolar em um antigo manicômio os que contraíram o que eles acreditam ser um vírus que impede as pessoas de enxergarem, impondo a elas uma quarentena. O lugar é sujo, velho, falta água. E a cada dia que passa a situação vai ficando pior. O governo coloca soldados ali para cuidarem dos cegos, mas estes têm medo de também contraírem o vírus e pouco interferem. Distribuem comida e água e assim os dias vão passando, até que o local vai enchendo e começa a escassez de comida. E aí que o verdadeiro inferno se instala.
Os personagens que estão ali não têm nome e são identificados como o primeiro cego, o médico, a mulher do médico, o velho da venda preta, a rapariga de olhos escuros, entre outros. Apesar da falta de nomes, rapidamente nos apegamos aos personagens.
… tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse. (p.64)
A mulher do médico é a única que ainda enxerga. Ela finge que está cega, para não deixar o marido ir sozinho para a quarentena. É pelos seus olhos que vemos a imundície que o mundo está se tornando. A cada trecho, vemos como na escassez, em vez de as pessoas se juntarem para resolver seus problemas cotidianos, elas tomam para si o que podem por garantia ou por egoísmo. Com seus personagens, Saramago consegue mostrar o que imagina ser o pior lado do ser humano. No meio de tanta maldade, a mulher do médico nos comove, com sua dedicação ao seu grupo e abnegação.
Ao ler o livro me lembrei do filme espanhol “O Poço” (2019), do diretor Galder Gaztelu-Urrutia. Ambos mostram personagens que na escassez e nas situações problemáticas não se juntam para chegar a resolução, mas sim, tomam para si o que podem. Com o confinamento e o risco de não terem suas necessidades básicas atendidas, estes personagens se desumanizam, deixando de lado seus valores e pensando somente em si mesmos. Os que agem de forma diferente, pensando no coletivo e lutando pelo bem do grupo, acabam sofrendo muito mais que os demais. O protagonista de “O Poço” Goreng e a mulher do médico têm muito em comum, pois querem ajudar o próximo para que todos possam ficar bem, mas pagam um alto preço por isso.
Eu continuo a ver, Felizmente para ti, felizmente para o teu marido, para mim, para os outros, mas não sabes se continuarás a ver, no caso de vires a cegar tornar-te-ás igual a nós, acabaremos todos como a vizinha de baixo, Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho a responsabilidade, não amanhã, se estiver cega, Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam, Não podes guiar nem dar de comer a todos os cegos do mundo, Deveria, Mas não podes, Ajudarei no que estiver ao meu alcance. (p.241)
Para mim, o livro pode ser entendido como uma alegoria sobre a cegueira de quem enxerga com os olhos, mas não consegue enxergar além do próprio umbigo. Nas páginas de Saramago percebemos como o egoísmo e a ganância das pessoas gera o caos que se espalha rapidamente e faz com que todos sofram.
Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. (p.310)
O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos. (p.131)
A escrita de Saramago causa estranheza à primeira vista. Os parágrafos são longos, há poucas divisões em capítulos, os diálogos aparecem no meio do texto, apenas iniciando-se por letra maiúscula e entre vírgulas. Os personagens não têm nomes e o português é o original do livro, não foi “abrasileirado”. Apesar do impacto inicial, rapidamente me acostumei ao seu estilo e me apaixonei pela sua escrita. Vale lembrar que Saramago é o único escritor de língua portuguesa que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, feito ocorrido em 1998 e que ele também foi ganhador do Prêmio Camões em 1995, o mais importante da literatura de língua portuguesa.
Apesar de ser uma escrita fluida, demorei muito para ler o livro por causa do tema pesado. “Ensaio sobre a Cegueira” é um livro brutal, violento, uma experiência dolorosa para o leitor. Tudo é exposto de forma cru, os acontecimentos são jogados na sua cara e em muitos trechos após a leitura era como levar um chute no estômago. É um livro para ser lido com pausas, digerido.
Li este livro pela primeira vez há mais de 20 anos e ele se tornou um dos meus preferidos. Resolvi fazer uma releitura, mas me questionava se ainda sentiria o mesmo impacto e agora, ao fim das páginas do livro, posso dizer que mesmo tanto tempo depois o livro continua assustador e impactante.
A Editora Companhia das Letras vem lançando os livros de José Saramago em uma coleção na qual o nome do livro vem escrito por um autor brasileiro e em “Ensaio sobre a Cegueira” a caligrafia é de Chico Buarque.
Em 2008 foi lançado o filme “Ensaio sobre a Cegueira”, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. Ao terminar de ver o filme ao lado do diretor, José Saramago declarou que ficou tão feliz com a adaptação de sua obra para o cinema quanto estava quando acabou de escrever o livro.
Em 2014 foi lançado “Ensaio sobre a Lucidez”, no qual o escritor retoma alguns personagens, situações e reflexões sobre questões éticas e políticas abordadas naquele romance.