A Bolsa Amarela, escrito pela brasileira Lygia Bojunga e lançado em 1976, conta uma jornada de autoconhecimento vivida pela protagonista Raquel, filha caçula de uma família simples cujos integrantes mais velhos passam a maior parte do dia fora de casa, trabalhando ou estudando, e ela se vê muitas vezes sozinha e incompreendida, sendo ainda muito ridicularizada por suas inquietações. Ela utiliza de grande criatividade e imaginação na tentativa de compreender as pessoas ao seu redor e o mundo com suas incoerências, inconstâncias, seus valores, e qual o papel que então deve desempenhar como indivíduo em sua realidade.
As inquietações da Raquel são transformadas em personagens que ela cria como amigos imaginários, sendo que a interação com eles alivia a angústia de se sentir isolada dentro de sua própria família. Estes amigos também a ajudam a refletir sobre o funcionamento do mundo e a dinâmica entre as pessoas. Na sua família, os pais e a irmã mais velha passavam o dia fora trabalhando, o segundo irmão ficava na faculdade, e a terceira irmã não fazia nada, mas também não dava bola pra Raquel, inclusive a trancava em casa quando saía para encontrar o namorado. Desta situação, resultam as suas três maiores vontades, sendo a primeira a vontade de ser adulta logo, ou seja, de ter voz, de ser respeitada, de ser incluída nas decisões da família; a segunda é a vontade de ter nascido homem, pois o que ela vê é que meninos podem tudo, são os líderes nas brincadeiras, podem empinar pipa, jogar futebol, virar os chefes de família e estudar pra resolver e decidir as coisas; a terceira é a vontade de escrever, imaginando o que faria da vida quando fosse grande. Essas vontades são materializadas como uma coisa que pode ser vista, inflada como um balão, ou esvaziar até ficar bem pequena, mas sem uma descrição de suas formas físicas.
No seu mundo imaginário, ao se corresponder com André e depois com Lorelai, Raquel nos dá mais informações a respeito do cenário em que ela se encontra, e passamos então a saber que sua família veio da roça e que lá a vida para ela era muito melhor, pois via os pais sorrindo com frequência e andando de mãos dadas, podia conversar com todos os bichos e ainda tinha muitos lugares para se esconder. Daí depreendemos que por algum motivo, provavelmente financeiro, a família precisou se mudar para a cidade e isso mudou completamente o humor de todo mundo, além de também tomar o tempo de convivência.
A bolsa amarela surge meio como uma personagem, que também pode ser compreendida como uma metáfora para o inconsciente infantil, ao passo que sua posse como objeto revela o desejo de entrar no mundo dos adultos. Raquel utiliza a bolsa para esconder todas as suas vontades da vista das outras pessoas, dando a entender que ela passa a se interiorizar, talvez até se retrair de uma certa forma, visto que os adultos a ridicularizam e a menosprezam no mundo real, refugiando-se então no seu mundo de faz de conta.
Outros personagens surgem e interagem com Raquel e com a bolsa, como forma de sua imaginação criativa conseguir entender suas questões. Todos são apresentados com uma narrativa de origem e depois agem como se sua criadora abrisse mão de conduzir suas ações, pois ela concede a cada um autonomia sobre suas próprias histórias, de modo que não se admite passividade diante da própria existência. Com o avançar da leitura passamos a entender que esses personagens refletem aspectos da personalidade da protagonista e que a solução para as suas respectivas dores simbolizam que as inquietações da Raquel vão perdendo força e vão sendo substituídas por uma compreensão de si mesma, até chegar ao ponto em que duas de suas grandes vontades vão embora, menos a de escrever, afirmando-se então que está tudo bem em ser menina, criança e candidata a escritora.
A simbologia dos demais personagens
André: primeiro amigo imaginário que aparece, é menino justamente porque uma das grandes vontades da Raquel era ter nascido menino. Ela escrevia cartas e ele respondia com bilhetes lacônicos. Ele só dá uma resposta mais longa quando a Raquel pede “POR FAVOR” e segundo ele não se pode recusar a atender um pedido assim. Nessa passagem logo no início da história me parece muito o reflexo de que para a Raquel o comum era não receber tanta atenção na vida real, então ela espelha sua realidade no comportamento do André, que responde os bilhetinhos quase que por obrigação, então o atendimento da súplica feita em letras maiúsculas dá a idéia da intensidade do seu sentimento de abandono por ser constantemente ignorada, e que no seu mundo imaginário é encenado o comportamento que julga ser o ideal que é justamente receber atenção, orientação, e ter as necessidades atendidas. André sugere que ela faça tudo inventado, sem misturar imaginação com o mundo real, e que assim ninguém pegaria no pé dela.
Lorelai: aparece meio que em substituição ao André. Para ela, Raquel relata como a vida era melhor antes, em outro lugar em que a família morou, e novamente, me parecendo um reflexo da sua grande insatisfação, imagina estar planejando fugir por sugestão da Lorelai para esse lugar onde a vida parecia ser bem melhor. Ela age como amiga e conselheira de Raquel.
O fecho da bolsa: enrosca quando Raquel pede, para que não olhem dentro da bolsa. Para mim representa uma tomada de consciência dos seus próprios problemas, solucionados conforme seus desejos e prioridades.
Afonso (Rei): o galo Rei, o rei do galinheiro e que depois pede para mudar de nome para Afonso, é como a representação da determinação da Raquel em lutar pelas suas ideias e quebrar protocolos e obrigações pré-estabelecidas a ela por outras pessoas. Só pra constar, Afonso era obrigado a mandar em todas as galinhas e ele queria o contrário disso, que cada uma pensasse por si e fizesse o que achassem melhor. Achei curioso que durante a leitura eu sempre pensava no nome desse galo como Rei Afonso, concatenando na ordem os seus dois nomes, e fui pesquisar sobre algum Rei Afonso. Descobri que Rei Afonso foi o primeiro rei de Portugal e que no seu caminho ao trono enfrentou a própria mãe como opositora política e expulsou o exército mouro, declarando a independência do seu território. Sendo assim, parece que se soma ao sentido do Rei Afonso na vontade de ser independente, e que pra isso teria que obviamente encarar os seus pais para “governar” a própria vida.
Terrível: o galo que teve o pensamento costurado. O único pensamento solto era que tinha que ganhar de todo mundo. Ele não começou assim, era gente boa, fazia amizade com quem aparecia se apresentando como adversário, e por isso seus donos o privaram de pensar em outras coisas. Aqui fiquei um pouco na dúvida quanto ao que ele estaria representando, mas pela sua ligação familiar com Afonso (são primos) acho que estaria manifestando ainda a discordância da Raquel em seguir um papel pré-determinado, seja pela família ou pela sociedade. Terrível é usado para dar lucro aos seus donos e não fica com nada de suas vitórias, e ao deixar de vencer seria abandonado à própria sorte, provavelmente morrendo numa luta com o Crista de Ferro. Pode ser também que seja em seu imaginário a forma como vê a rotina dos adultos, dos seus pais, que passam o dia trabalhando e mesmo assim tem pouco dinheiro.
Alfinete de fralda: representa a criança que Raquel quer guardar dentro de si. Tem uma história curta, é abandonada logo e fica enferrujada embora nunca tenha feito nada. Ganha a grande responsabilidade de fiscalizar e controlar as vontades da Raquel dentro da bolsa, pois quando elas estufassem demais e ficassem pesadas, o alfinete teria que espetá-las. Na minha interpretação, manter viva nossa criança interna é como uma bússola para nos guiar de volta a nossa identidade, valores, desejos, ou seja, às coisas que são importantes de verdade para nós, um valor que conhecemos apenas em nosso íntimo e que também nos permite apreciar a vida sempre com uma curiosidade típica de criança, desejo de conhecer as coisas, as pessoas, sabendo também reservar um tempinho para se divertir com bom humor.
A guarda-chuva (Nakatar Companhia Limitada): a guarda-chuva aparece com sua história de brincar de ser grande e pequena, até que um dia se quebra. Para Raquel, a guarda-chuva mesmo quebrada continuava sendo muito bonita, então resolve adicioná-la à bolsa amarela. Me parece o tipo de preocupação em não deixar de ser criança quando atingir a vida adulta, ou melhor, de ainda querer e poder brincar e se divertir mesmo quando for grande. A guarda-chuva ainda demonstra que não queria apenas ser um objeto bonito, queria ser útil, e isso reflete a preocupação com um grande estigma que as mulheres vivem em ambientes em que são meramente objetificadas, de modo que até suas vozes não são ouvidas, da mesma forma que a guarda-chuva teve a fala também quebrada quando se tornou apenas um objeto decorativo.
A Casa Dos Consertos: é o ideal de família e de convivência idealizada pela Raquel, onde tudo tem conserto, todos fazem de tudo (obrigações e lazer), escolhem o que querem ler e estudar, apreciam música e também dançam. Todos interagem entre si e revezam os afazeres.
Um livro para todas as idades
A Bolsa Amarela é um livro infanto-juvenil que foi traduzido para diversos idiomas e já foi encenado em teatro do Brasil, da Bélgica e da Suécia. Sua escritora Lygia Bojunga recebeu o prêmio Hans Christian Andersen – Ibby pelo conjunto de sua obra, sendo que este é o mais tradicional prêmio internacional de literatura para crianças e jovens. Desde o lançamento de A Bolsa Amarela, o livro vem sendo objeto de estudo de alunos dos ensinos fundamental e médio e ainda é tema de trabalhos de graduação e pós-graduação com frequência, tamanha a sua importância para a literatura brasileira.
Diante deste contexto, é seguro afirmar que é um livro para todas as idades! Raquel é uma menina curiosa, inteligente e criativa, que enfrenta a solidão e se sente deslocada em sua família, mas que encontra uma forma de lidar com seus problemas usando sua imaginação fértil. Os acontecimentos reais e fantásticos dão beleza a um texto de várias camadas, que diz muito além do que está escrito.
Embora o livro tenha sido escrito há quase 50 anos, ele continua atual e relevante, já que ilustra a luta interna a qual todos estamos sujeitos para entender o nosso papel no mundo e para adquirir consciência de nós mesmos.
“Resolvi que se eu queria escrever qualquer coisa eu devia escrever e pronto. Carta, romancinho, telegrama, o que me dava na cabeça. Queriam rir de mim? Paciência. Melhor rirem de mim do que carregar aquele peso dentro da bolsa amarela.” p.103