Ao voltar de uma viagem à praia, Aldo e Vanda encontram sua casa toda revirada. Há objetos quebrados por todos os lados, livros rasgados, fotos e documentos espalhados pelo chão, espelhos partidos, móveis fora do lugar, uma desordem total. Os dois ficam surpresos, pois apesar da bagunça, o que havia de valor não foi levado. O que teria acontecido?
É este evento que dá início a um mergulho no passado de ambos e que faz ressurgirem fatos que estavam guardados há muito tempo, em objetos e na memória deles. Vanda e Aldo, que estão juntos há mais de cinquenta anos, terão então que lidar com as lembranças e as revelações que a reorganização da casa lhes trará.
Os laços e os múltiplos pontos de vista
O autor divide “Laços” em três livros. O primeiro é composto pelas cartas que Vanda mandou para Aldo nos anos 1970, durante um período de 4 anos, desde que ele saiu de casa para viver com a amante Lidia até próximo de ele retornar para casa.
As cartas revelam a dor crescente de Vanda e dos filhos com a ausência de Aldo. Um trecho é particularmente forte:
“Hoje eu sei qual é seu medo. Você teme que seus filhos enfraqueçam sua escolha de nos excluir, que se intrometam na sua nova relação e a atrapalhem. É por isso, meu caro, que é pura conversa fiada quando você diz que quer continuar sendo pai. A realidade é outra: livrando-se de mim, você quer se livrar também das crianças. É evidente que a crítica da família, dos papéis e outras tolices desse tipo são apenas uma desculpa.” (p28)
O segundo livro é narrado por Aldo e se passaram mais de trinta anos após seu retorno para casa. Nesta parte temos a visão de Aldo sobre tudo que aconteceu enquanto estiveram separados e vemos toda a dor que o casal e os filhos tiveram que suportar a partir dali. Nestes capítulos, vemos Aldo mostrar como foi mesquinho e egoísta, até se tornar submisso e ter medo de Vanda, em uma trajetória que parece de declínio. Aos olhos dele, Vanda também não parece feliz.
É nesta parte que Vanda e Aldo retornam das férias da praia e tem que se deparar com as sombras do passado, presentes nos objetos espalhados pela casa.
O terceiro livro, que eu definiria como monumental, mostra um encontro dos filhos do casal, que até então não se falavam há anos. Anna e Sandro conversam sobre passado e futuro, se lembram do relacionamento dos pais e vemos como isso afetou a vida dos dois. Anna diz:
“Os únicos laços que contam para nossos pais são os que eles usaram a vida inteira para torturar um ao outro”. (p. 127)
A palavra laços é o título perfeito para o livro, que mostra como os laços estabelecidos ao longo da vida podem ser fortes, tênues, sufocantes, de ternura. Podem ser firmes, mas também podem se romper. São também amarras que podem trazer infelicidade, ressentimentos e podem inclusive aprisionar. Em italiano o livro se chama “Lacci”, que também significa cadarços, sendo que há uma parte importante do livro envolvendo pai e filhos e a forma deles amarrarem os sapatos. Na introdução do livro, Jhumpa Lahiri diz que o romance todo é uma série de amarrar e desamarrar, de pôr em ordem e desmontar, de criar e destruir.
Jhumpa Lahiri é tradutora do livro do italiano para o inglês e sua introdução ao livro foi mantida na edição em português. Considero a leitura desta introdução como imprescindível, pois ela prepara muito bem o leitor para o que está por vir e facilita a compreensão das camadas do texto.
O livro “Laços” foi adaptado para o cinema em 2021, pelo diretor italiano Daniele Luchetti e leva o título original “Lacci”. Confira o trailer abaixo.
Uma leitura impactante
Os múltiplos pontos de vista apresentados na narrativa e o vai e vem no tempo dão um panorama de toda a dor com que aquela família teve que lidar ao longo dos anos. A profundidade que o autor consegue dar a cada personagem, mesmo em um livro tão pequeno em tamanho, é realmente impressionante.
“Em toda casa há uma ordem aparente e uma desordem real”. (p. 137)
A frase acima é dita por Sandro, o filho do casal, a sua irmã Anna e parece antever o final do livro. Os personagens nos mostram que a frase pode servir para uma casa, mas também para uma vida. Para organizar ou limpar algo, às vezes é preciso bagunçar antes.
Ao terminar o livro eu estava ao mesmo maravilhada, triste e surpresa. Sabia que pensaria neste livro por semanas, tamanho o impacto causado em mim. Como aquelas vidas se encaminhariam a partir dos eventos narrados? Apesar de o livro não dar esta resposta, confesso que fiquei com um pouco de esperança de que tempos melhores viessem para todos da família.
Domenico Starnone é Elena Ferrante?
Domenico Starnone é um escritor italiano nascido em Nápoles em 1943 e que atualmente vive em Roma. Em 2001, ele venceu o prêmio Strega, o prêmio de mais prestígio da Literatura Italiana, com o livro “Via Gemito”.
O autor já foi apontado como sendo Elena Ferrante, a escritora italiana que é famosa mundialmente e da qual não se sabe a verdadeira identidade, mas ele nega sempre que questionado sobre isso em entrevistas.
Domenico é casado com a tradutora italiana Anita Raja, que também é apontada como sendo Elena Ferrante.
“Laços” tem uma temática bastante parecida com “Dias de Abandono”, segundo livro de Ferrante, que traz a história de Olga, mulher que é abandonada pelo marido e fica sozinha com dois filhos pequenos e então mergulha em profunda solidão e sofrimento, enfrentando um longo caminho para se reencontrar e descobrir quem ela realmente é. Em “Laços”, embora a temática seja parecida, temos também o ponto de vista do marido e dos filhos, o que nos possibilita entender o que a separação causou em todos os membros da família. Os dois livros se complementam e são igualmente duros de se ler, mas belos.