Biá chega ao sebo que frequenta aos domingos e vê que sua mesa está ocupada. A mesa em que ela se sente bem, a qual sempre se senta para ler os livros que tanto ama. Sente que a mesa é sua por direito, então se dirige à moça ruiva e linda que está lá, e que se entrega a uma escrita sem pausas. Mas ao se aproximar, Biá vê que a moça está chorando e percebe que não pode pedir que ela saia de sua mesa, então decide não ignorar o que vê e se aproxima.
Após se cumprimentarem e de pairar entre elas um silêncio desconfortável, Olívia convida Biá para que se sente à mesa. Ela tem a intenção de guardar suas coisas e ir embora, mas é surpreendida pela pergunta que Biá lhe faz: o que você não tem mais que te entristece tanto? O trecho transcrito mostra o momento em que as duas travam a primeira conversa, na voz de Olívia:
“O jeito como ela se calou para me ouvir foi como dois braços abertos na minha direção. Quando me dei conta, contava, sem cortes, minha vida para uma estranha, com a sensação de que me faltavam amigos. Falei de mim como nunca falara antes. Ordenei, mastiguei, enfrentei toda a minha desordem. Quando terminei, esperei que ela dissesse alguma coisa… mas não podia imaginar que seria tanto o que começava ali.
— Vejo seu rosto arranhado. Pequenos riscos vermelhos na pele e no branco dos olhos. É o sal das lágrimas… e imagino seu coração lutando com o que não alcança. Só as coisas desimportantes deveriam nos ocupar, menina Olívia. Sei que você é uma mulher, mas não posso deixar de notar o tempo que tem pela frente. Ninguém nunca nos ensina a rir de nossa falta de saída. E o que mais podemos fazer? Chorar pouco resolve e muito deforma. Ainda assim, engolimos a chave e choramos entalados. Quem dera eu mesma fosse capaz de fazer o que digo. Ah… não sou! (p.15)”
É ali que começa uma amizade improvável entre uma velha senhora, psicanalista aposentada e amante de literatura, e uma jovem jornalista, às quais o leitor vai conhecer (e muito provavelmente se afeiçoar) ao longo das páginas do livro.
Elas estão em um sebo improvisado de Belo Horizonte. O sebo fica em uma esquina movimentada, na banca de revistas do Rodolfo, em uma avenida que se transforma aos domingos, quando uma de suas pistas é impedida para que as pessoas circulem livremente. O proprietário da banca espalha algumas mesas com sombrinhas, abre uma pequena estante com livros usados, edições raras e antigas, a maioria clássicos da literatura, e serve pão de queijo quente aos frequentadores.
Quando leio o trecho no qual Carla Madeira descreve o sebo do Rodolfo sinto uma vontade imensa de estar ali nas manhãs de domingo. Como deve ser agradável sentar à mesa deste sebo e comer pão de queijo mineiro enquanto se lê um exemplar antigo de “Os miseráveis” ou de “Cem Anos de Solidão”.
“A Natureza da Mordida” alterna capítulos com a narração de Olívia sobre seus encontros com Biá, que passam a ocorrer com frequência depois que se conhecem, e outros com as anotações de Biá, que por conta de sua idade avançada tem perdas de memória e luta para preservar sua identidade e suas lembranças, por isso anota o que é importante.
O ritmo do início do livro é lento. As personagens Biá e Olivia vão se conhecendo e se afeiçoando devagar, a amizade vai se construindo aos poucos, até se consolidar. Quando já conhecemos bem as personagens, o livro se torna arrebatador. As histórias de vida vão surgindo, segredos são ocultados, segredos são revelados. Há lugar para muita dor, luto e raiva. Mas também para esperança. O não acontecer, o quase acontecer e o temer acontecer por vezes tem mais peso na vida das personagens que o que de fato ocorre. O envelhecimento e o abandono são temas muito presentes na história.
A escrita de Carla Madeira me causou um impacto enorme. Ela me impressionou demais porque é muito poética e me parece que cada palavra, cada parágrafo, cada frase de efeito está exatamente em seu lugar. Todo o texto me parece ter sido pensado com exatidão para despertar os sentimentos de quem lê, pois Carla fala sobre as relações humanas e sobre a intensidade da vida de forma muito envolvente. Esta leitura me fez refletir sobre as questões levantadas por semanas e várias vezes voltei a pensar em passagens impactantes do livro. É uma escrita da qual não consegui ficar imune ao que os personagens sentem, eu sofro e me alegro com eles.
“A Natureza da Mordida”, lançado em 2022, é o terceiro livro de Carla Madeira, autora mineira que se consolidou como uma das mais lidas no Brasil já com seu livro de estreia “Tudo é Rio”. Assim como o rio de “Tudo é Rio” é uma metáfora para a vida, que corre por vezes vigorosa ou furiosa e em outras calma e suave, em “A Natureza da Mordida” também há uma metáfora para a vida, que aqui assume a figura da mordida de uma velha senhora banguela:
“A vida não é de confiança, Olívia, nos apunhala com a mesma faca com que passa manteiga. A vida, essa senhora banguela, não teme a feiura e faz coisas medonhas com sua boca murcha que não lhe inibe as gargalhadas. Ao contrário, gosta de nos exibir a extensão da mordida que nos dará com deboches e ironias ao invés de dentes, para nos fazer pagar a língua enquanto giramos estonteados, pra lá e pra cá, entre suas gengivas.” (p.19)
Para escrever este texto reli as partes que grifei ao ler o livro e novamente fiquei impressionada, pois são tantos trechos poéticos, profundos, carregados de sentimento. Me pergunto como Carla Madeira consegue escrever desta forma. Ahh, Carla, eu devoraria cada livro seu e é uma pena que ainda existam somente três. Agora só me cabe ler o que me falta, “Véspera”.
“Antes de ser louca, eu queria a liberdade, essa irmã torta da loucura. Perdi o freio, por isso sou louca, se o tivesse jogado fora seria livre.” (p.53)